saravá Jr Black

Carla de Miranda
3 min readOct 24, 2022

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ele me dizia que (sabia que) me via anos antes de termos nos conhecido de fato, nas rodas de samba que ele trabalhava no Recife Antigo. eu o disse que nos encontramos um pouco depois de ele gravar o samba que pergunta quem é o famoso quem do psicólogo, me arrepiando já graduada.

— tenho certeza que era você. e eu já gostava de te ver no samba antes de te encontrar aqui.
—já que insiste, eu não duvido de tu.

quis aprender com ele e seus jeitos brincantes e provocantes de questionar as ordens que desencantam o bem viver comum e de convocar encantamentos de bem viver que nós podemos sim fazer enquanto encarnades.

a cada abraço, palavra, silêncio de contemplação e troca, mesmo das mais arengosas, aprendia — e ele insistia: o encontro humano é plural, então aprendíamos.

o vi cuspindo fogo até chorar com uma pimenta arrochada na galinha guisada que ele insistiu em me levar pra comer na grande feira da sua cidade natal, onde moro hoje. eu não ia, ele insistiu, fomos na hora de bater o cuscuz, seu sapato era novo, ele cavalo de xangô chorou com a pimenta nova e com o sapato, não parávamos de rir juntos.

no Rio de Janeiro, compartilhamos a tensão de ver os fluminenses reagindo a Bacurau — no meio do filme, quanto mais DJ Urso aparecia, ele saiu do prédio pra fumar. ele me defendeu de graça do assédio sexual de um colega daqui, pulou comigo na primeira vez que vimos o show do disco Coruja Muda quando me danei do nada pra ir lá na Praça do Arsenal só pra isso e voltar de virote pra trabalhar aqui, me encheu do nada e tantas vezes de fé e generosidade.

— queria levar meu filho nesse show. você… você acha que seria bom?
— nossa, fico honrada com a confiança! tu é o pai. tu sabe como tá teu menino. tu conhece a Praça do Arsenal. é o time de Siba. tu vai tomar a melhor decisão.
— pois te vejo já já.

talvez tivéssemos mesmo nos encontrado de alguma forma antes de eu saber que nos encontramos. agora vamos encontrá-lo de outros modos, levando o que nos resta de suas apostas furiosas nas melhores partes do todo de nós.

hoje trabalhei na rua servindo charme, com o coração apertado sabendo da sua morte, pensando no que podem os homens (sim, os homens) fazer das humanidades que precisamos, e seu samba não parou de soar, de novo em repeteco, na minha rádio mental.

aos homens que me acolhem no trabalho falei assim que soube que ele morreu— e talvez tenha sido assim que inventei outro jeito de chorar — pelo amor de deus peçam ajuda quando precisarem, com vergonha mesmo, peçam, com tudo.

quando ia pedir (!), ganhei o alento de um homem. trocamos nossas histórias sensíveis.

— e aí Pedrinho, tu vai pra tua nova morada, a casa de Carla?
— vou. :)

também choramos do sensível e rimos do ridículo restante das nossas dores. encontrar homens que se escutam, mas que consideram o que escutam; que acompanham, que encaram a miudeza da parceria e que se manifestam em circuitos de cuidado muda coisas em mim que eu só invento nome depois de acompanhar.

— que bom que lhe fiz bem e lhe ajudei com o seu luto.

e assim vivi um domingo. aquele domingo cujo tempo geral corre ao longe, mas cujo tempo de dentro faz brisa, sossego, lava louça, corta a tomate, varre o chão, brinca de levar o corpo nos braços, rindo e confirmando a próxima noite pra vir dormir. um domingo que comecei cedo como fosse uma segunda, “e tu já parasse quieta alguma vez na tua vida?”, “se precisar chorar chore”, “é Lula! venha cá dançar mais eu!”, mas “vou” morar no sossego que um domingo precisa ser.

seguirei brincando de luz e sombra cantando com viventes e fantasmas pra lembrar dele encantando o lustre do Teatro Santa Isabel como quem não quer nada… além dos encontros que criam vida.

que tu veja, Black, de outro lugar que tem quem em teu berço agrestino e tua morada litorânea esteja reinventando a Pindorama como tu tanto insistiu, meu preto velho.

o muro dos fundos que a gente já pulava ficou mais alto.

e a gente tá cuidando como tu de derrubar.

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Carla de Miranda

O encanto me comove, e comovida canto, batuco, danço, e pergunto muito. Pessoa do pluricomunal, grão de areia saboreando vento, psicóloga, artesã do cuidado.