Desiniando alguns nós

Carla de Miranda
4 min readJun 23, 2024

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O regime heterossexista é um racha na linguagem. Onde comunidades fazem línguas de semelhança, circulação comum de bens e cooperação coerente, supremacistas forçam rachá-las criando compulsões de antagonismo resta-um. A gramática heterossexista subordina o todo ao um, o um contra o todo.

O heterossexismo racha as gramáticas do comum: quem se diz a favor da vida forçada arbitrariamente a um trabalho precário é na prática a favor dessa destruição maquiada de apoio, dessa metamutilação da vida — e vida acontece enquanto livre, que acontece livre enquanto cultivada no cuidado autorresponsável, que acontece produzindo bens de usufruto ativamente comum.

Já que um corpo sofre um processo natural que é aliviado no cuidado coletivo — produção de usufruto direto e comum — o heterossexismo justifica o racha na comunidade: nega o cuidado, nega o comum, sexualiza o massacre — só posso ser eu se negar tua presença na minha fala e negar a minha quando te nego, só posso usufruir do bem comum se não produzi-lo e produzir sem usufruir, então produzo a negação da tua presença para afirmar a minha, me prometem que só assim sou eu, nego você e me nego ao te negar até não sobrar nem nós nem eu e você, porque sem você levar minha presença na sua linguagem e no seu modo de vida, não me realizo, mas prometem que eu me realizo quando nego levar sua presença na minha linguagem e no meu modo de vida. Uma virtualização do real que o consuma, representação terceira forjada no imediato, que opõe o singular ao geral. Impõe alienigenismo. Caça a origem. Nega a origem. E não falo (só) de gestação e aborto.

Existimos pela cultura que nos comunica. Se uma cultura local nos terceiriza pela privação longa com sobrecarga imediata, quebra a identificação da produção com usufruto do bem comum. Curioso como o cristianismo rachou a via humana de comungar do todo, prometendo comunhão. Me enfio na sua rua e ofereço um amor prometido que só pode vir da sua submissão fracionada. Passe fome e te prometo o céu. Sofra e te prometo deus. Faça o que eu digo, não reaja ao que eu faço.

Todo corpo vivo age, reage e, por cooperação mútua, responde. O heterossexismo racha e paralisa o processo vivo. Repetir a palavra da dor até que a cabeça frature para a nova resposta — outra fratura. Mas o exame dos tecidos a várias mãos organizadas em cooperação mútua na costura da satisfação virtual-individual com a satisfação real-coletiva, da real-individual com a virtual-coletiva, organiza a cicatriz, faz a nova resposta.

O cristianismo insistiu no sexo/raça como pele, não como atividade. Na atividade como invasão, negação, convicção separatista, massacre; não como convívio comum. No convívio como negação ao próximo, diferença como problema, e separação entre palavra e ato, não como identificação conjunta. Faça o que eu digo, não reaja ao que eu faço.

Com 1h de explicação histórica do dimorfismo sexual humano e de como nos fazemos humanos, 2 mulheres me responderam: “Eu não pergunto ao outro porque tenho o meu preconceito”; “A bíblia diz só dois sexos”. Ao escutar outras respostas de expansão comum do entendimento, também respondi: “A gente se cria na vida negando uns aos outros ou reconhecendo uns aos outros?” Dessa vez não me doeu ver homens se reconhecendo responsáveis em comum com todas as outras pessoas no auditório e devolvendo àquelas o que elas reclamaram. Ano passado vi muita mulher do direito reclamar que algumas podem sim mandar nos outros tanto quanto homens fazem. Podia ter falado em 2min que aquelas do direito se orgulhavam de justificar a classificação sexista e racial da biologia genocida e contrariar essa biologia para se igualarem aos homens que contrariam os modos de conviver em comum. Falei 5min de muita coisa. Homens reclamaram do colonialismo.

Vi 2 vereadoras que se vendem mais do que servem ao público falarem só “parem de nos oprimir porque nós temos o poder da vida e o direito de decidir”. Uma delas canta hiphop, outra compõe versos sobre culturas que ela nem vive nem cultua, mas ambas se dizem representantes. Que eu saiba, o poder da vida só existe em coerência comum, soberania plural.

Vida humana sem comunidades adoece. Uma pessoa não tem poder sozinha de realizar outra, do zero, da subtração — ensaiar isso gera subtração, furando o limite do negativo. Capitão Pátria só existe na ficção, sendo um símbolo representativo — um símbolo projetado por aqueles que já produziam seu caráter, e pelo símbolo, empestaram esse caráter por gerações — que reflete a ficção prática de sua origem: uma ficção que se afirma própria na negação do todo, mas por isso mesmo, não se sustenta por si.

O heterossexismo é um regime cultural que foi transformado compulsiva e virtualmente em globalização. Se a praga e o predador consomem a maioria dos hospedeiros e presas, restam eles mesmos entre si ou migram.

Quem se alimenta da praga e do predador regula seu excesso para cooperar no convívio comum. Na humanidade, a forma praga (igreja, estado-nação, corporações) e a forma predador (grupos de convívio compulsório, massificação imperativa) se alimentam das comunidades copoéticas que se regem com linguagens do comum — destas, o saber-cuidar é suficiente para usufruto geral. Nestas, o saber-cuidar não se esgota agora. É circular sem acumular nem consumar a matéria-prima, cultivar a atividade comum da matéria-prima, por isso mesmo sustentável. Gosto de Maturana dizendo que isso é coerente com a deriva natural de todos os vivos.

É contra essa deriva natural comum que os colonizadores fazem do heterossexismo uma função que forja a classe sexo, gesta o édipo, elogia a tragédia, romantiza o massacre, morbiliza a comédia, viraliza o monólogo, finge a vida de morte até matá-la fingindo a morte de vida, sexualizando o abuso e abusando a conexão cooperativa, distribuidora, circular. Se alimenta da fratura do comum que organiza a vida, mas não a reproduz.

Acumula a fratura.

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Carla de Miranda

O encanto me comove, e comovida canto, batuco, danço, e pergunto muito. Pessoa do pluricomunal, grão de areia saboreando vento, psicóloga, artesã do cuidado.